Um passo na liquidação de direitos<br>e no empobrecimento dos portugueses
A proposta de alteração à Lei do Arrendamento Urbano, apresentada pelo Governo, caso venha a ser aprovada e promulgada, altera profundamente o quadro legal existente, prevendo-se que milhares de famílias sejam sumariamente despejadas, particularmente as dos estratos mais carenciados da população, e inúmeros pequenos estabelecimentos e lojas encerrados. Invocando falsos objectivos e pressupostos, o que o Executivo PSD/CDS tem em vista é instituir um indisfarçável instrumento concebido para servir os interesses dos senhorios e do capital financeiro e da sua actividade especulativa no imobiliário.
O capital financeiro mudou o seu paradigma de investimento no imobiliário
Dados e elementos que desmentem o Governo
É verdade que o mercado de arrendamento está inoperante?
Não é verdade. O número de contratos de arrendamento entre 2001 e 2011 cresceu 46 479, totalizando agora 786 904 os fogos arrendados. Em 2011, de acordo com o último Censo, o número de fogos disponíveis no mercado para arrendar era de 110 207. Um dos principais motivos porque estes fogos não são arrendados tem a ver com a situação social das famílias que, mesmo carentes de habitação, não possuem meios para aceder ao mercado de arrendamento.
Qual o significado exacto de «congelamento» de rendas? Significa que não há mercado de renda livre?
A ideia de que o regime de arrendamento urbano, em vigor em Portugal, é sinónimo de rendas congeladas desde 1974 é falsa. A verdade é que, desde 1981, vigora um regime de opção por renda livre ou condicionada para todos os novos contratos, ainda que sujeito a um regime de estabilidade, que previa a renúncia contratual apenas nas situações de incumprimento por parte do inquilino ou de comprovada necessidade da habitação para o senhorio ou descendentes. Desde 1990, com o chamado regime de arrendamento urbano (RAU), a liberalização das rendas é total, quer quanto ao valor, quer quanto à precarização dos contratos que passaram a ter um limite temporal definido em ciclos de cinco mais três anos.
O número de rendas anteriores ao regime de arrendamento urbano, às quais se atribui a causa das dificuldades do «mercado de arrendamento» é significativo?
Estas rendas representam hoje cerca de 33% do mercado de arrendamento habitacional, quando há 10 anos representavam 58%. Em 2011 estavam recenseados 255 536 contratos de arrendamento anteriores a 1990, num universo nacional de 786 904 contratos, enquanto em 2001 eram cerca de 430 mil, num universo de 740 425. Este número, que tem vindo a baixar todos os anos, corresponde apenas a 32,5% do total nacional.
É verdade que o congelamento das rendas conduziu à degradação das cidades?
A degradação das zonas antigas da generalidade das cidades e vilas tem causas muito mais profundas. Ela radica, essencialmente, num conjunto de políticas de solos que privilegiou a expansão urbana para as periferias, proporcionando à banca lucros especulativos assentes sobretudo nas mais-valias decorrentes da transformação de solo rural em solo urbano. Mais-valias essas que eram inexistentes na mera «modernização» de tecido urbano já existente. Este investimento da banca em novas urbanizações, destinadas ao mercado de venda, permitiu ainda lucros ligados ao crédito à construção e à compra de casa.
Mas os senhorios, ao cobrarem rendas baixas, ficaram impossibilitados de fazer obras…
Sendo verdade que existem senhorios com poucos recursos e sem possibilidade de realizar as obras, não é correcto imputar ao inquilino a responsabilidade pela degradação dos fogos. A verdade é que à época em que foi negociada a renda, ela o foi aos valores de mercado de então, e os inquilinos têm vindo, desde 1985, a suportar as actualizações de renda legalmente estabelecidas.
Como é que esta Lei facilita os despejos?
Desde logo, pela criação de um procedimento extrajudicial capaz de conduzir à desocupação do imóvel de uma forma célere e eficaz, num prazo de três meses. Medida que é acompanhada, em paralelo, pela institucionalização de um serviço especial para agilizar os despejos e onde apenas é obrigatória a constituição de advogado para dedução de oposição ao requerimento de despejo. Como é óbvio, a não obrigatoriedade de constituição de mandatário judicial, no caso do requerente (proprietário), favorece-o unilateralmente no que toca às despesas com o acesso à justiça. Verifica-se ainda uma ampliação das possibilidades de denúncia dos contratos, por parte dos proprietários, seja para efeitos de habitação própria dos senhorios, seja para a realização de obras.
O mecanismo especial de despejo aplicar-se-á, assim, a toda as situações: cessação de contrato por revogação; caducidade de contrato de arrendamento pelo decurso do prazo; cessação do contrato por oposição à renovação; cessação do contrato de arrendamento por denúncia livre pelo senhorio; cessação do contrato de arrendamento por denúncia para habitação do senhorio ou filhos ou para obras profundas; cessação do contrato de arrendamento por denúncia pelo arrendatário; resolução do contrato por incumprimento do pagamento de renda ou por oposição pelo arrendatário à realização de obras coercivas.
Que instrumentos são criados para operacionalizar os despejos e como funcionam?
É criado um novo Serviço, intitulado Balcão Nacional de Arrendamento. Cria-se, deste modo, um procedimento à margem do normal funcionamento dos tribunais, onde o recurso por parte dos inquilinos é fortemente limitado. Mesmo quando é possível o recurso, pagando o inquilino caução e rendas, este não é suspensivo, tendo o fogo de ser abandonado, num procedimento claramente intimidatório e dissuasivo para os inquilinos, até pelos custos que lhe são inerentes.
Como é facilitado o despejo motivado pela necessidade de habitação própria dos proprietários?
Para os proprietários desaparece o impedimento de possuir casa arrendada no concelho, ou limítrofes para os casos de Lisboa e Porto. A indemnização a pagar, que era correspondente a doze meses de renda, passa a seis meses. E basta que o senhorio seja proprietário do fogo há dois anos, quando, na actual Lei, esse prazo é de cinco anos. O facto de os inquilinos passarem a estar sujeitos ao aumento da renda significa, por si só, na generalidade das situações, a inexistência de facto de qualquer salvaguarda.
Como são facilitados os despejos motivados pelo anúncio da demolição ou da realização de obras que obriguem à desocupação do fogo?
O proprietário pode em qualquer altura comunicar ao inquilino que necessita de fazer obras que obrigam à desocupação do local arrendado. Basta fazer acompanhar essa comunicação de uma declaração do município. Este procedimento obriga ao despejo num prazo de sete meses. É despejado qualquer inquilino, ainda que idoso ou deficiente, sendo que nestes casos o proprietário é obrigado a realojar o arrendatário no mesmo concelho em condições análogas. Não existe qualquer garantia de que o prazo legal para início das obras seja cumprido.
Como é facilitada a denúncia dos contratos e como são alteradas as indemnizações?
A denúncia dos contratos é facilitada nos contratos de duração limitada, desde logo pelo menor período de renovação dos mesmos, o qual passa dos actuais três anos para dois anos. É ainda facilitada, nos contratos sem duração limitada, quando passa a ser possível a denúncia para habitação do proprietário ou seus descendentes, mesmo nos casos em que o arrendatário ocupa o fogo há mais de trinta anos. E, nos contratos sem duração limitada, é sempre possível ao proprietário denunciar o contrato mediante comunicação ao arrendatário feita com dois anos de antecedência (salvo casos de inquilinos com mais de 65 anos ou incapacidade superior a 60%).
As indemnizações baixam de valor (passam a metade) nas situações de despejo para alojamento do senhorio ou seus descendentes e ganham carácter claramente intimidatório nas situações de despejo por inexistência de acordo no valor da nova renda (o inquilino que limite a sua oferta a um valor mais baixo, ainda que de acordo com as suas reais disponibilidades ou estado de conservação do imóvel, está a baixar o valor da indemnização).
Os contratos de arrendamento não habitacionais, ou seja os estabelecimentos comerciais existentes, também serão abrangidos por esta proposta de lei?
Sim, vai afectar profundamente muitos dos contratos de arrendamento não habitacional anteriores a 1990. A pequena mercearia de bairro, a padaria, o café, o pequeno restaurante familiar, que hoje dão vida aos bairros antigos das cidades e cujos contratos de arrendamento se prolongam há décadas, vão ser directamente afectados por esta proposta de lei e correm sérios riscos de encerrar.
Está previsto algum regime de apoios para inquilinos mais carenciados?
Existem apenas declarações vagas quanto à possibilidade de apoio, mas nada está considerado na actual proposta de lei. Mesmo nas situações de excepção aos aumentos, para inquilinos com mais de 65 anos ou 60% de deficiência, a renda apenas não aumenta durante cinco anos. Decorrido esse período passa a vigorar o regime de renda livre aos valores de mercado.
É verdade que o capital financeiro está inibido, na actual situação, de investir no imobiliário?
O capital financeiro mudou o seu paradigma de investimento no imobiliário, sobretudo porque o modelo assente na infraestruturação de enormes áreas das periferias atingiu a saturação e o aproximou perigosamente do cenário de bolha imobiliária. Hoje a banca e os especuladores ligados ao imobiliário procuram especialmente áreas de mercado com prestígio, destinadas a sectores da população, incluindo estrangeiros, com elevado poder de compra. Os centros históricos e outras zonas centrais das cidades oferecem, por isso, óptimas perspectivas de negócio.
Rendas vão aumentar
É verdade que na proposta do Governo estão defendidos e garantidos direitos dos mais idosos e desfavorecidos?
Os valores e regras estabelecidas são, quando aplicados em concreto, a comprovação de um regime que deixará dezenas, se não centenas, de milhares de famílias, sem outra alternativa que não seja a de perder o seu contrato de arrendamento. Para além de que no prazo de cinco anos, os inquilinos idosos e com mais de 60% de deficiência perdem todos os direitos actuais e ficam sujeitos ao regime de renda livre.
Três casos a tomar como exemplo sobre o possível impacto da lei dos despejos no valor mensal das rendas de vários agregados familiares:
Exemplo A
Um casal de idosos que tem como rendimento mensal duas pensões mínimas de velhice de 254 euros (valor actualizado em Janeiro do corrente ano) e que paga de renda mensal 20 euros, num bairro antigo da cidade de Lisboa. Que valor poderá atingir a renda actualizada de acordo com esta proposta de lei?
À luz desta Proposta de Lei, o casal tem um rendimento mensal bruto corrigido superior a 500 euros, pelo que a sua renda é actualizada para 25% do rendimento mensal, podendo passar a pagar 148,2 euros. O valor actual da renda será neste caso multiplicado por sete. Mesmo que se recorra à disposição alternativa – que estabelece como limite 1/15 do valor matricial nos termos do CIMI – basta que o fogo tenha um valor matricial actualizado de 20 mil euros (nada improvável em zonas centrais das cidades) para que o tecto para o novo valor de renda passe para 111,2 euros.
Exemplo B
Um casal de idosos que tem como rendimento mensal duas pensões sociais mínimas de 195,4 euros cada (valor actualizado em Janeiro do corrente ano) e que paga de renda mensal 20 euros, num bairro antigo da cidade de Lisboa. Que valor poderá atingir a renda actualizada de acordo com esta proposta de lei?
À luz desta Proposta, este casal tem um rendimento mensal bruto corrigido inferior a 500 euros, logo a renda é actualizada para 10% do rendimento mensal. Neste caso, a renda duplicará para os 45,6 euros.
Exemplo C
Um casal com dois filhos menores, que paga uma renda, com contrato anterior a 1990, no valor de 100 euros. O casal tem um salário mensal bruto de 800 euros cada. Que valor poderá atingir a renda actualizada de acordo com esta proposta de lei?
O casal poderá ver a sua renda actualizada para 25% do rendimento mensal, ou seja, 325 euros. Só não será assim se o valor matricial actualizado do fogo for inferior a 58 470 euros, neste caso o valor anual da renda não poderá ser superior a 1/15 do seu valor matricial.
A proposta do Governo pretende:
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Conceder aos senhorios a possibilidade de imporem o aumento das rendas, sejam antigas ou mais recentes, mesmo aos inquilinos com mais de 65 anos, deficiência superior a 60 por cento ou com baixos rendimentos, para os chamados valores de mercado, ou seja, para valores acima dos 400 euros/mês;
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Permitir aos senhorios a possibilidade de sujeitar os contratos antigos, mesmo para quem tem mais de 65 anos, ao novo regime liberalizado com o prazo contratual de dois anos;
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Reduzir a vigência dos contratos transmitidos por morte do inquilino para contratos de dois anos;
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Facilitar os despejos por obras ou demolição sem garantir o realojamento ou a indemnização dos inquilinos;
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Possibilitar o despejo sem recurso a tribunal quando o senhorio alegar querer a casa para habitação própria ou dos filhos;
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Criar um mecanismo extrajudicial para facilitar os despejos dos inquilinos, retirando dos tribunais competências no âmbito do arrendamento.
Por outro lado:
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Não apresenta uma única medida que obrigue os senhorios a fazer obras de conservação;
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Não impede que os senhorios coloquem para arrendamento casas em más condições de habitabilidade;
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Não impõe regras nem cria mecanismos fiscais de incentivo ao arrendamento;
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Permite o arrendamento clandestino ao retirar as rendas das deduções do IRS.